segunda-feira, 7 de março de 2011

Forty Part Motet


Sentado no meio daquela sala, pela milésima vez eu ouvia aquelas vozes. Conhecia os ritmos de cor. Mas não é de mim que eu quero falar. É dela. Ou é de mim pensando nela. Ela que tinha acabado de entrar de mãos dadas com um rapaz. Ela que era linda.
Nunca vi alguém sorrindo tanto. Nunca vi alguém sorrindo tanto em um museu de arte contemporânea. Ela estava feliz na galeria. “É esta!”, ela disse, soltando a mão do rapaz e correndo para o meio da sala, para perto de mim. O rapaz que estava com ela sentou-se ao meu lado. Nem dei importância. Era ela que importava para mim naquele instante.
Ainda no meio da sala, ela segurava as duas mãos juntas, uma abraçando a outra, e observava a sala sorrindo um sorriso de boca fechada. Parece que ela não sabia qual caixa escutar primeiro.
Com cautela, ela se aproximou de uma das caixas e sorriu um sorriso maior, mas ainda de boca fechada. Acompanhei seus passos suaves por toda a sala. Ela andava devagar, parecia sempre que iria parar em uma das caixas e ficar para sempre. Mas ela nunca parava. O som do moteto de Thomas Tallis não fazia mais parte do meu ouvido. Era o som dos sapatinhos dela que me encantava naquele momento. O som dos sapatinhos dela percorrendo a sala de uma maneira suave que parecia parar, mas nunca parava.
Até que parou e o silêncio nos consumiu. Nós dois. O silêncio da música que havia acabado consumiu a garota. O silêncio dos seus sapatinhos que haviam parado me consumiu. Ela olhou para o rapaz, ele não olhava para ela. Acho que estava cansado. Ele estava cansado e não olhava para ela. Mas eu olhava.
As tosses e as vozes baixas que vinham das caixas recomeçaram. Ela sorriu grande de novo e voltou a deixar que a suavidade de seus sapatinhos entrasse em meus ouvidos.
Eu a observava. Ela nem percebia minha presença. Nem a minha, nem a do rapaz, nem a das pessoas que vez em quando adentravam a sala. Eu a observava. Ela usava um vestido preto e enquanto andava pela sala, mais precisamente frente à caixa que tossia, os pêlos de suas pernas começaram a arrepiar e, em cada caixa que entrava em seus ouvidos, os pêlos arrepiavam mais e mais e mais e mais. Primeiro nas pernas, depois nos braços e eu sei que, até na nuca coberta pelos cabelos, pêlos arrepiaram.
“Aqui tem uma criança!”, ela disse sorrindo para o cara do meu lado. Ele sorriu de volta sem muita importância. Eu quis sorrir de volta com muita importância. Tem sim uma criança, pensei. Eu queria que ela tivesse falado comigo, sorrido pra mim. Eu sabia que ela entendia que ali tinha uma criança. Ela não falava da voz. Ela fala de mais. Ali tinha uma criança.
O cara levantou, a música recomeçou. Ele foi até ela, seguindo-a, disse algo em seu ouvido e depois saiu. Duvido muito que ela tenha escutado-o. Fez bem.
Tive vontade de levantar e ir até ela, mas não fui. Se eu tivesse ido, estragaria o texto. O momento era só dela e das vozes. Eu era só o narrador. Só. Só ali eu a observava. Ela era linda.
E ela continuava com seus sapatinhos e seus pelos eriçados. Não era o moteto em si, eu sabia. No fundo, não era só o moteto. Era mais. Era alguma coisa nas vozes. Nas vozes presas nas caixas.
O cara chegou na porta da sala. Fez um gesto. Ela saiu. Pêlos murchos, sorriso pequeno. Não resistiu, olhou mais uma vez para as caixas e para as vozes dentro das caixas. Olhou para mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário