terça-feira, 25 de outubro de 2011

Enzimando cores



Se eu fosse cega, iria querer provar tudo. Colocar tudo na boca e a boca em tudo.
Passar a língua, engolir, enzimar, digerir. O gosto das coisas na cegueira.

Se eu fosse cega, iria querer, com o paladar, sentir todas as cores. Experimentar o claro, o escuro.

Sabor de azul na cegueira, sabor de vento.
Sabor de branco na cegueira, sabor de algodão.
Sabor de cinza na cegueira, sabor de poeira.

Na minha cegueira de estômago, todas as cores digeridas viram uma só. E, depois de me cansar delas, o vômito de cores sairia garganta afora.
E, de estômago vazio na cegueira, eu estaria pronta para novos sabores.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011




Minha mãe
,,,é tesoura
que repica minhas
,,,que corta meus
que retalha o que
É tesoura
,,,,, minha mãe

sábado, 8 de outubro de 2011

De dentro da gente



Mariana, de súbito, levantou do sofá e correu, tropeçando nos próprio pés cobertos pelas meias e escorregando no assoalho lustrado, naquele mesmo instante, pela mãe. Ainda em estado de êxtase, chegou até a garagem, onde encontro o pai sentado, remexendo ferramentas antigas.
-Pai, sabia que dentro da gente tem um tantão de peixinho?
Por algum motivo o pai não respondera. Deve ser porque ela havia falado rápido, ainda ofegante da corrida.
-Pai, tem um tanto de peixinho dentro da gente! - ela tentou mais uma vez, controlando a voz ofegante.
O pai soltou um grunhido, apenas para demonstrar que tinha ouvido e estava lá, mas permaneceu de costas para a garota.
-Pega a chave de fenda para mim.
Mariana, procurou por toda a parte algo que poderia ser essa tal chave de fenda.
-Que isso, pai?
Ele, sem responder, levantou-se e buscou um objeto que Mariana achou engraçado: um palito fino com um pequeno bastão colorido. Ela riu e pensou que talvez servisse como varinha mágica para o Tedy (seu urso de pelúcia com Cartola. O avô costumava dizer que Tedy era mágico que nem ela).
-Cadê sua mãe? Vá até a cozinha e pergunte se o almoço já está pronto.
Ela, meio desapontada, com a cabeça baixa, brincava de escorregar no chão lustrado pela mãe enquanto percorria o caminho até a cozinha. Passou pelos olhos do avô.
-Onde vai, patinando desse jeito, menina?
Mariana, ainda de cabeça baixa, fitou o chão branco feito gelo e sorriu.
-Vô, sabia que dentro da gente tem peixinhos?
O avô sorriu, mostrando gordo o sorriso branco da dentadura. Alguém bateu na porta e entrou. Era uma dessas visitas que chega sempre sorrindo murcho e vai embora sempre sorrindo murcho sem acrescentar sorriso nenhum na vida da gente.
-Essa é a Mariana? Como cresceu! Antes era uma coisa miúda...
O avô, ainda sorrindo para os peixinhos de Mariana, respondeu:
-Pois é! Isso cresce que nem abóbora!
A visita, de sorriso murcho, falou mais algumas coisas entre os dentes murchos e foi embora para a garagem. Talvez ajudar o pai, talvez só dar o ar da graça murcha. Não importa.
Mariana, vendo a visita ir para a garagem, lembrou-se do que o pai havia pedido e foram - ela e o avô - ao encontro da mãe, na cozinha.
Assim que colocou os pés de meia no chão da cozinha, a menina viu os olhos da mãe fuzilarem o pano que antes era branco.
-Mariana! Quantas vezes eu disse que não é para andar de meia pela casa? Você parece não me ouvir! Larga todas as meias sujas pelo chão! Você e seu pai pensam que eu sou o quê?!...
O avô, assustado, esperou a reação da menina, enquanto a mãe saia pela casa afora, ainda em explosão de frases.
Mariana sorriu, olhou fundo nos olhos do avô e disse:
-Acho que mamãe tem dentro dela um tubarão!


Desejo que nem sonho:
Nunca se sabe o começo
Quando se percebe, já está dentro,
Já faz parte


Consumido. Ingerido: boca, sonho, corpo, beijo, desejo.
Aglutinam-se.

O olho fechado abriga, aquece, conduz no sonho a realidade
E, é no quente desse sonho que todo resto se evapora.

domingo, 2 de outubro de 2011

Penteado



Ela pegou o cabelo entre as mãos. Passou os dedos ásperos no couro cabeludo e foi descendo, laçando os fios nas mãos - sem nenhuma leveza - e puxando-os.

"Assimaí tão parece doida Você. até anda por descabelada,"

Alguns fios, cismados em ficarem mais juntos de outros, agarravam os dedos da Mulher. Ela puxava com força, fazendo a cabeça ser pega de surpresa entra um puxão e outro.

"Você Assim,. até doida parece aí andaportão descabelada".

As unhas grandes, pintadas sempre de cores abatidas, alcançavam a pele que reveste o crânio e rasgavam o silêncio. De dentro da mente, ouvia-se.

"aítão doida Você. por Assim descabelada. anda".

A Mulher, com puxões e aspereza, foi separando os fios, deslocando-os contra suas vontades e amarrando-os em uma trança forte e justa dessas que começam bem rente a cabeça e que parecem nunca se soltar.

"anda Você portão, aí doida. até descabelada Assim parece".

No meio da trança, para ajudar a prender o cabelo, a Mulher amarrou um relógio. Relógio esse que contava as horas ao contrário. Junto com as unhas, debaixo do couro cabeludo, dentro do crânio, forte na mente, o tic tac contrário do relógio ressoava.
Tinha data, tinha hora, tinha momento, tinha que ter.
Tinha. Tem.
Tinha antes. tic tac. Agora tem.

A trança tinha ficado pronta. Estava organizada em quase perfeição.
A Mulher sorriu.

"Você anda tão descabelada por aí. Assim, parece até doida"